ENTRETENIMENTO
Hipocrisia nossa de cada dia
Peguei o copinho plástico de café, acompanhado do palitinho (também de plástico) e desci pensando que iria até a pia da copa passar uma água no recipiente pra tirar o resto de café já seco, assim poderia usá-lo novamente e poupar um novo copinho. Chegando na cozinha da firma, me deparei com o que pra mim é pior que filme de terror: a pia com cheiro de produto de limpeza. Logo meu estômago quase embrulhou e praticamente na velocidade da luz eu direcionei o copinho e palitinho numa das lixeiras, escolhendo a que estava com a tampa já aberta – por ser mais fácil e menos nojento -, sem me preocupar em verificar qual era especial para aquele tipo de descarte. Virei as costas pra voltar pra minha sala e, no mesmo instante, toneladas de decepção caíram sobre mim: fui uma hipócrita de novo, em dobro, como se não bastasse ser uma só vez.
Nessa hora novamente comecei a tecer teias de pensamentos sobre o tema que muito me tem incomodado nos últimos tempos. Essa coisa de consumar uma ação e no momento seguinte apedrejar a mim mesma por estar cuspindo pra cima e tantas vezes fazendo coisas que não condizem com valores que defendo.
Eu sou hipócrita quando encho o saco de todos meus amigos fumantes pra que não joguem suas bitucas nas calçadas, nas ruas e principalmente onde houver grama, masnunca tenho um cinzeiro no carro e quando fumo dirigindo, hora ou outra acabo tacando o cigarrão pela janela. Eu sou hipócrita quando tento manter uma alimentação saudável, diminuindo a quantidade de açúcares e conservantes nos alimentos e dando preferência ao que for mais nutritivo, mas acendo Carlton Blend após cada refeição e saboreio como se não houvesse amanhã.
Eu sou hipócrita quando, ainda falando de comida, defendo a vida dos animais e fico do lado dos que entendem que matá-los para o consumo humano é um ato cruel, desnecessário e mercenário do sistema, mas (por enquanto) não consigo olhar pro franguinho frito empanado como um cadáver e ter nojo de comê-lo. E eu continuo sendo hipócrita quando não boto a carne na boca, mas tomo leite e como seus derivados, passo a manteiga no pão e adoço o chá quente com mel.
Eu sou hipócrita quando evito pedir uns trocados emprestados do meu pai porque sei que, se as coi$as não estão bem pra mim, pra ele não é muito diferente, mas gasto cerca de uma hora em cada banho tomado pelo simples prazer de meditar embaixo da água quentinha, anulando toda e qualquer preocupação com a quantidade de zeros que a conta de luz vai ter no próximo mês.
Eu sou hipócrita quando aconselho meus amigos e às vezes pessoas que mal conheço a seguirem seus sonhos e obedecer simplesmente ao desejo de como a alma delas anseia viver, deixando de atender sempre às expectativas da sociedade todo tempo, mas não consigo tomar coragem pra largar um emprego me faz totalmente infeliz porque dependo daquele paycheck do quinto dia útil pra bancar minhas contas, dívidas e até algumas futilidades.
Eu sou hipócrita quando digo a alguém “Ei, tenha paciência com aqueles que você ama. Eles são humanos imperfeitos igual a gente e não agem de tal maneira por mal; maltratar não vai mudar a situação”, mas quase arranco os próprios cabelos nos dias que meu pai faz muita manha e judio das minhas cordas vocais repetindo alto que “não aguento mais esse ou aquele chororô!”.
Eu sou hipócrita muitas vezes, e se fosse listar aqui cada cena que flagro minha hipocrisia escorregando pelo bolso furado, você, guerreiro que alcançou a leitura até os últimos parágrafos, talvez se entediasse antes de qualquer tentativa de conclusão, porque, meu amigo… o texto ia triplicar de caracteres.
Mas acredito que as grandes sacadas sobre essa autopercepção de tanta hipocrisia depositada nas ações do dia-a-dia é que, no fim das contas, o que importa mais é ser capaz de reconhecer que nem sempre o fazer condiz com o dizer, afinal, falar é fácil, difícil é botar na prática, e vamos combinar que sim, em casa de ferreiro, espeto é de pau.
E mais importante ainda é aceitar que não somos máquinas de perfeição e é preciso aprender a lidar com os momentos de falta de sentido nas coisas da vida, mesmo que os saquinhos de hipocrisia tenham que ser guardados no fundo do bolso até que aprendamos a tornar nossos valores em realidade mais do que simplesmente proclamar.
E você, guarda onde tua hipocrisia?